tenho dormido pouco.
preenchem-me os pesadelos, as histórias mal contadas, os meus problemas...fico uma noite inteira na cama a rebolar... não consigo esquecer a maldade passada, os terrores e as maldades a que fui sujeita.
lembro-me de pequenina quando a minha mãe me punha a trabalhar, ou maior, quando gozavam comigo na escola por ser alta e não ter mamas... não me consigo recordar de períodos da minha vida em que tenha andado relaxada..
tentei, para seguir em frente, esquecer-me de toda a maldade a que tive direito. erro de uma vida.
agora, um por um, enaltecem-me os dias, aqueles que me entristeceram.
mais vezes acordo porque em sonhos me recordo do meu ex-namorado. possesso, a querer a minha juventude, a minha beleza.
é tão mau recordar-mo-nos do passado e descobrir que o que achávamos certo afinal estava errado. que aquele amor não era amor para mim, que me ia magoar, que me iria roubar tudo o de bom.
perdi tanto. perdi tanto por ser tão crente em mim. e perdi ainda mais, por crer que conseguiria ultrapassar todas circunstâncias da melhor maneira.
quase no fim do primeiro estágio penso seriamente em tudo o que me passa pelas mãos, os que entram no serviço e saem de pé, os que saem por mãos de outros, e os que saem debaixo de lençóis.
a vida é ruim. é má, maquiavélica.
por muito que lavemos as mãos, a farda, o cabelo, o corpo, a morte vem connosco para casa.
por muito que o quarto seja lavado, trocado, desinfectado, o quarto continua a ser de quem morreu.
as almas caminham naqueles corredores, nas cadeiras sentam-se os mortos, e á porta ficam os vivos.
especados a olhar para o corpo que vai coberto por um lençol. os mais comovidos, mesmo que não relacionados choram, alguns desmaiam. outros pensam que quem vai debaixo do lençol é um dos seus.
é o terror, a morbida realidade e cruel da nossa existência.
vivemos até nos deixarem viver, deixamos de respirar, e nem sabemos quando devemos de dizer o último adeus. tentamos, e eu enquanto enfermeira, assisto incrédula ao derrame de lágrimas, aos abraços e condolências.
e o último papel, depois de tudo feito para sobreviver, é simplesmente tapar com um lençol. e agir noutra vida.
pela primeira vez alguém faleceu no serviço enquanto eu lá estava. na segunda foi meu doente, consciente, falador, um pouco tonto...ontem faltei. hoje ele morreu. no quarto ao lado, um outro doente. uma patologia incrivelmente mortal, há duas semanas que me avisaram que o sr estava para falecer...recusou cirurgia, que era a única forma de salvamento para aquela patologia.. hoje, bem disposto, sorridente, dizia piadas, e basicamente, está a morrer aos poucos... chego a ponderar seriamente nos meus principios, na eutanásia, nas escolhas...e depois, um milagre. alguém que chega com a morte dentro do corpo, e dia a dia, vai vivendo e a doença, que é impossível de regredir, vai regredindo...
chego ao ponto de não saber...se acredito na teoria ou em ligares.