Sexta-feira, 12 de Novembro de 2010

            Morte : 

 Olha em frente e vê-te. Não tens espelho. Mas não interessa. Olha-te. Reconhece cada traço teu. Reconhece as rugas que ganhaste com o tempo. Vê os dentes cariados pela falta de higiene. Olha as mãos calejadas, magoadas. Vê as unhas denegridas, roídas, destruídas. Vê os braços. Picados. Mudados. E agora toca os teus olhos. Vê como profundos estão. Sente a sensibilidade. Sente a negrura da solidão que os preenche. E agora toca o teu ventre. Ouve com as mãos os sons da tua barriga vazia. Olha os teus joelhos, marcados pela artrite precoce. Vê os teus pés. Negros da sujidade. Vê as cicatrizes de todos os caminhos que já percorreste descalça. Toca no cabelo. Não tens. Estás careca. Toca no peito. Só tens um. A vida tirou-te o outro. Toca outra vez no ventre. Ainda sentes a vida que carregavas mas preferiste matar? Olha para a tua mão. Ainda usas a aliança apesar de só. Olha outra vez. "para sempre juntos". E pensa. Onde está ele? Que prometeu amar-te na saúde e na doença? Está com outra. Fazendo o que prometeu fazer contigo.

            E onde estás tu? Sentada só numa sala de espera. Repreende as lágrimas, vá. Escusas de olhar para mim, eu levar-te-ei. Um dia, não hoje.

            Tenho comigo o teu filho crescido, que mataste com 3 meses. Sei bem que querias salvar-te, mas mataste-te ao matá-lo. Olhas para mim, para o canto da sala. Eu sei que não me vês como uma figura. Mas sei que sentes o odor a morte. Eu sei que sim. Eu sei quando me sentem. Dizem que a morte tem um cheiro especial, cheiro a channel. Olha, chamam o teu nome. Vais ver as notícias sobre o teu cancro. Põe um sorriso falso na cara descoberta de pêlos. Põe um brilho no olhar vazio. Não feches já a porta, o teu filho e eu, Dona Morte também queremos assistir à tua dor.

            Ouviste? O teu cancro voltou. Pensa no que vais fazer. Repreende as lágrimas. Morde o lábio inferior. Muito bem. Oh não. Não sorrias assim. Oh não.

Vais desistir dos tratamentos? Não. Não. Não. Não é assim que está escrito. Não. Muda. Muda. Altera. Oh não. Não podes brincar com a morte. Sou eu quem decide. Sou eu.

 

 

            Deitaste-te na cama, nua. Possuída pelo sorriso que te surgiu. Vestiste-te, e eu segui-te. Não te suporto essa felicidade radiante. Tenho de te trazer comigo hoje. Vais ser minha hoje. Oh não. Não posso.

Morre, por mim, pela Morte morre.


música hurt - NIN

publicado por naná às 14:35 | link do post

De Miki Koishikawa a 12 de Novembro de 2010 às 20:49
Lindo, lindo! :'))


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De
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