A enfermeira restou comigo. Disse que tinha de lá estar três horas comigo para analisar o efeito da medicação em mim. E quando me aconchegou, após a injecção dolorosa na mão, eu chorei. Ela, ela puxou uma cadeira de longe para perto da minha cama. E sentou-se. Olhou-me com mais seriedade e perguntou-me porque eu não sorria. Eu contei-lhe. Entre lágrimas entre espasmos, entre gritos mudos eu contei-lhe pela calada da noite o que me ia na alma desde à 3 anos. Contei-lhe o tormento que diariamente sofria desde os meus quinze anos. Ela ouviu, não me questionou. E sorriu como quem sorri para um vizinho que já há muito se conhece. Ela disse-me que tinha reconhecido o meu olhar. Ela mesma já se olhou ao espelho. Ela mesma já viu o meu olhar no seu, ao espelho. O que o meu José me fazia, o seu pai lhe fazia. Ela contou cada pormenor. Contou quando começou. Contou quando acabou. Contou como acabou. Acabou com o pai dela na prisão. Ela grávida dele. A mãe suicidou-se atirando-se contra um comboio. E o pai dela ainda hoje resta na prisão. O pai dela, o respeitado professor e depois reitor da Universidade. O pai dela foi preso por abusos sexuais, continuados, não só à própria filha, mas a todas as alunas que precisavam de boas notas. O pai dela que lhe batia à noite, primeiramente por ela ser a segunda melhor aluna da turma. O pai dela que nunca levantou a mão á mãe, mas lhe dava presentes e anéis em troca do silêncio e da aceitação dela. O pai dela que procurava prostitutas até descobrir a puberdade da única filha. Mas sabe, quando ela me contou eu suspendi o choro. Não por ser uma história chocante, mas porque o meu mal não era nada igual ao dela. E sabe o que ela me disse : todos os pequenos males, são grandes males. E levantou-se e aconchegou-me outra vez.
Acho que ela já estava em delírio. Perguntou-me se podia fumar. Eu deixei. Deixei que a enfermeira chefe brotando lágrimas fumasse num quarto de doenças infecciosas.