Quando chegaste até mim não eras mais do que um pequeno e leve menino. Sofredor, nesta triste vida, que te morreram todos enquanto tu nascias. A mulher que te pariu não gritava por ti, mas pela tua família que ao vir para o hospital te ver nascer, morreu. Nunca foste abençoado e nunca sentiste o calor paterno. A tua mãe não te olha nos olhos e não te trata por filho. Deixa-te a comida no forno e manda-te comer. Não sabe do que gostas. Não sabe o que queres fazer um dia. És tão pequeno que não percebes. Hoje é o dia do teu recital. E ela não apareceu. Ficou em casa a ver televisão. Mas não te importas, a tua melhor amiga, a psicóloga está aqui para te ver. Um dia passado chamaste-lhe mãe. E ela sorriu. E tu não estranhaste. Em casa, à tua mãe que te trouxe ao mundo chamas pelo nome próprio antecedido de "dona". Dona São é o que lhe chamas. E não te imaginas a chamar-lhe de mãe. Hoje é o dia do teu recital. E eu estou presente. Vejo bem o carinho que a tua psicóloga por ti tem. E tu também. Os teus olhos pequeninos sorriem. E mostras esses dentes branquinhos de leite. Ainda és tão jovem, e mesmo assim, tão desprotegido. Referes-te à psicóloga como a tua amiga, e em segredo rezas para que seja tua mãe. E ela mesma o deseja também. Tão só, infértil, com um marido vivo, mas para ela morto. Sabes? Foi o marido dela que causou o acidente em que perdeste pais e avós. Foi o marido dela, que fugiu do local do acidente e não quis saber mais. É a bebida, é a bebidagemia ela quando o expulsou de casa. E agora, tal e qual uma fada-madrinha, ela te protege. Meu menino. Que cantas alegremente os Reis e não sabes o que é ter mãe. Cantas o nascimento de um filho do Homem, quando a tua mãe te canta a morte. Quão traiçoeira pode ser a vida. E tu cantas. E a psicóloga sorri, e lá longe em casa, quando anoitecer, ficarás ainda mais só. A tua dona-mãe o teu pai quer!, e os seus pais quer! E, tu ficarás só. Encarregue à mulher de quem te matou a família. Quão intriguista pode ser o destino?
Não o sei, mas crio-o.